O rosacrucianismo, iniciado na
Alemanha pós Reforma protestante, afirmado pelos Manifestos do século XVII,
possuía uma mensagem de cristianismo alternativo, sintetizando a tradição
esotérica alemã na denominada Tradição Primordial antes dividia em alquimia,
cabala e astrologia, pelo menos, sendo que quando este pensamento é exportado
para a Inglaterra, a alquimia, ou seja, a produção de ouro e remédios, o
esoterismo de laboratório desafiará o cristianismo bíblico. Na Inglaterra,
especialmente, o rosacrucianismo será difundido por Robert Fludd (1574-1637),
herdeiro e referência em assuntos alquímicos, e por Michael Maier (1568-1622),
alemão, tutelado pela dinastia Stuart, os grandes defensores do esoterismo
ocidental. Na França, o rosacrucianismo aparece em 1623 com os Cartazes de
Paris, mas de maneira tímida e misteriosa, sem definição conceitual e com um
apelo de fazer adeptos a favor de um Colégio Invisível. Não houve uma classe ou
apoio aristocrático francês para a difusão do pensamento rosacruciano, setores
da Igreja e acadêmicos não aceitaram aquilo que entendiam como sendo
charlatanismo. Aliás, os ataques eram desferidos exatamente contra Fludd e
Maier. O rosacrucianismo, porém, como sendo uma Ordem ou Fraternidade, não foi
assumida por nenhum de seus principais nomes, além de Fludd e Maier, Valetim
Andrea, autor confesso do Terceiro Manifesto, de 1616, e provável mentor do
Movimento criado pelo Círculo de Tubingen em 1614, decide por renegar o
rosacrucianismo definitivamente, pelo menos, em 1619, com o seu Turris Babel.
Para os que escolheriam o cristianismo, como foi o caso de Fludd, o discurso de
conciliação foi sendo abandonado com o tempo. Porém, a bandeira alquimista de
Maier foi sendo incontestavelmente característica do rosacrucianismo.
A mensagem original do
rosacrucianismo declinou definitivamente com a criação da Rosa Cruz de Ouro,
por Peter Mormius, em 1630, com o lançamento, na Holanda, do seu Arcanos Secretíssimos
de toda natureza desvelada pelo colégio rosariano, que focalizou nas
maravilhas alquímicas, principalmente na transformação material em ouro e na redimensão
da doutrina roasacruciana, criando um outro fundador, o Frederico Rosa, que
preconizava exatamente a alquimia. Não havia, documentalmente, porém, a existência
de uma Ordem Rosa Cruz, instituída e regularizada, Mormius seria uma “famulus”
de uma entidade de apenas três associados, sendo Frederico Rosa um deles. A nomenclaturalização “ouro” associada à Rosa
Cruz perduraria com a Rosa Cruz de Ouro, de Sincerus Renatus, no século XVIII,
com o lançamento, na Alemanha, da Verídica e perfeita preparação da pedra
filosofal da Fraternidade da Ordem Rosa Cruz de Ouro..., da Rosa Cruz de
Ouro, de Hermann Fictuld, com o Tosão de Ouro, e da Dourada e Rosa Cruz
( Gould und Rosenkreutz) de Bishoffswerder e Wöllner, além dos Irmãos Iniciados
da Ásia e da Rosa Cruz do Antigo Sistema. Estas associações eram paramaçônicas
e não instituições independentes rosacruzes. No final do século XIX, o rosacrucianismo
foi finalmente instituído com a Ordem Cabalística da Rosa Cruz, de Joséphin
Péladan e Stanislas de Guaita, em 1888, e com a Ordem Rosa Cruz do Templo e do
Graal , cisão da anterior feita por Péladan, em 1891. Apesar da ordem Rosa Cruz
do Templo e do Graal não ser considerada como sendo uma ordem propriamente iniciática,
a instituição do rosacrucianismo estava independente à Maçonaria.
Com Joséphin sendo um estatuto de
autoridade da marca Rosa Cruz, a sucessora moral de sua atividade, que foi
encerrada em 1897 com o fim dos salões rosacruzes, foi a Ordem Rosa Cruz Universitária
de Emile Dantine (1884-1969), que consagrou a França como sendo espaço de autenticidade
do rosacrucianismo, com a Inglaterra e a Alemanha, estando relegadas a iniciativas
paramaçônicas, como é a Societas Rosacruciana in Anglia, ou a entidades indiretamente
rosacrucianas, como a Ordo Templis Orientalis.
A DISPUTA DE PODER ENTRE AS ENTIDADES
ROSACRUCIANAS
Emile Dantine foi um dos mais
importantes nomes do esoterismo ocidental contemporâneo. A Bélgica, seu país
natal, foi influenciado pelo rosacrucianismo autenticado pela Ordem Rosa Cruz
do Templo e do Graal, com as palestras dadas na capital Bruxelas, fazendo estímulos
para a formação de estudiosos na área. Neste contexto, foi fundado a Ordem Rosa
Cruz Universitária, ao lado da Rosa Cruz Interior, também denominada Universal,
ambas em 1923, sendo as duas complementares.
De acordo com Eric Sablé, no Dicionário
dos Rosa Cruzes, Dantine também era martinista e católico,além de outras
ordens esotéricas. Sâr Hieronymos, como ficou conhecido, tinha como assistente,
e fiel aliado, Jean Mallinger (1904-1982), ou Sâr Elgim, pitagórico convicto e
fundador da Ordem de Hermes Trimegisto, praticante da teurgia e também martinista.
Este seu amigo fora testemunha das técnicas de Sâr Hierônymos em dominar o
magnetismo, inclusive fazendo parar chuva (2006:272). Esta afirmação, proferida
em 1979, coloca o Sâr Hierônymos, ou pelo menos tenta, na lista dos grandes alquimistas
do ocidente, tradição compartilhada com Conde de Chazal, famoso clarividente, e
Conde de Saint Germain, com sua imortalidade. Para honrar a tradição rosacruciana
é aconselhável que o mestre da Ordem tenha acesso ao sobrenatural ou a
conhecimentos que desafiem a lógica e o raciocínio mundano.
A Ordem Rosa Cruz Universitária copiou
a seleção de graus da Rosa Cruz de Ouro e demais paramaçônicas (Iº – Zelator
IIº – Theoricus IIIº – Practicus IVº – Philosophus Vº – Adeptus Minor VIº –
Adeptus Major VIIº – Adeptus Exemptus VIIIº – Magister IXº- Magus), com atenção
maior à teurgia desde o segundo grau. Para Sablé, porém, a ordem ensinava o
cristianismo místico à moda da Ordem Rosa Cruz do Templo e do Graal (2006:
215). No ano de 1926 foi eleito o Imperator, François Soetewag (Sâr Sucus).
Esta Ordem era preparatória para a Ordem Rosa Cruz Interior, posteriormente
Universal, considerada como continuadora da Ordem francesa, com os três graus
de escudeiro, cavaleiro e comendador, acrescentando o grau Imperator. Além desta
Ordem, havia a Rosa Cruz Celeste, mais adequada ao Martinismo.
Sâr Hieronymus foi responsável pela fundação
da FUDOSI (Federação Universal das Ordens e Sociedades Iniciáticas), promovendo
o fórum internacional em Bruxelas em 1934 com a participação de doze entidades,
dentre as quais a AMORC e suas diversas delegações, a Ordem Cabalística da Rosa
Cruz, chefiada por Lucien Manchel, pós Enacausse e indiferente ao Martinismo, a
Ordem de Hermes Trimegistos, fundado pelo aliado e secretário de Hieronymus, o
Sâr Elgim, a Rosa Cruz Interior, e as ordens Martinista e Sinárquica,
Fraternidade dos Polares e a Igreja gnóstica universal, relacionadas com Victor
Blanchard (1878-1953), que as chefiava . Deste modo, das doze entidades, três
eram de ligação direta com Sâr Hieronymus e três com ligação direta a Victor
Blanchard. A decisão do fórum criou três Imperatores: Sâr Hieronymus para a
Europa, Sâr Alden ( Spencer Lewis) para as Américas e Sâr Yésir ( Blanchard)
para o Oriente. Todas as Rosacruzes da Europa, incluindo as ramificações da
AMORC, estariam reconhecidas para participar da Rosa Cruz Interior, sendo entendidas
como escolas preparatórias. A relação entre Spencer Lewis (1883-1939) e Sâr
Hieronymus era de profunda admiração daquele para com este (2006:272).Porém,
não é esta a versão de Christian Rebisse, no livro Rosa Cruz História e Mistérios,
editado pela AMORC, a qual fora Mallinger que, em 1933, pede adesão à AMORC pedindo
para colaborar (2012: 357). Aliás, Rebisse não aceita a Ordem Rosa Cruz Universitária
como sendo sucessora da Ordem Rosa Cruz do Templo e do Graal por causa da doutrina
baseada na magia da Renascença, ou seja, a teurgia. A falta deste reconhecimento
está de acordo com a busca de legitimidade da AMORC em território francês, de acordo
com Christopher McIntosh, em Os Mistérios da Rosa Cruz, Lewis para legitimar
a recém fundada AMORC, esteve na França em 1909, buscando reconhecimento na
cidade de Toulouse, considerado um conclave internacional rosacrucianista
(1987: 145). Este reconhecimento lhe foi dado misteriosamente. No entanto, o mito
de Toulouse está relacionado, tradicionalmente, a Adrien Péladan (1815-1890), irmão
do fundador da Ordem Rosa Cruz do Templo e do Graal. A Ordem Rosa Cruz de Toulouse
não existiu, mas, além de fazer parte do imaginário rosacruciano, era o artificio
que fundamentava o rosacrucianismo na França. Como a França estava institucionalizando
a Rosa Cruz, diante das paramaçônicas, relacionar a AMORC à França foi uma interessante
estratégia de Lewis que, consequentemente, lançou bases para convencer adeptos na
Europa. No cenário de Sâr Hieronymus como sendo um sucessor da Rosa Cruz do
Templo e do Graal, Lewis estaria moralmente subordinado a autoridade do Sâr,
coisa inadmissível para os defensores da AMORC. Talvez seja por isso que Rebisse
atribuirá o fim da FUDOSI a Dantine e Mallinger, os apresentando como sendo
racistas e autoritários para com as outras ordens federadas (2012: 360). Para McIntosh,
a FUDOSI era um plano de Lewis com o intuito de combater seus inimigos internos
nos EUA, que desconfiavam de sua sinceridade e seriedade. Com o reconhecimento
internacional, a marca AMORC estaria preservada e apoiada por outras sociedades.
A figura de Mallinger, em McIntosh, servia como aliado de Lewis para suas
intenções de promover a FUDOSI e a AMORC no mundo (1987:147). Lamentavelmente,
Rebisse não menciona em nenhum momento qualquer desajuste da parte de Blanchard,
que em 1939, no novo fórum da FUDOSI, decidiu ser o Grão Mestre de toda a Federação,
sendo expulso. Analisando a FUDOSI, Sablé afirma que foi boa a iniciativa, de
Dantine, que organizou positivamente as ordens iniciáticas federadas, com o problema
estando entre os métodos de recrutamento entre a Rosa Cruz Universitária, representando
a ideia das ordens europeias, e a AMORC. As ordens europeias desejavam manter a
discrição das iniciações e a qualidade dos iniciados, o que era rejeitado
pela AMORC e suas publicações em jornais aberta ao público dos mais
diversificados. Sablé não faz citação a casos de racismo. A FUDOSI desapareceu
em 1951, com as permissões de Dantine, Mallinger e Ralf Lewis, demonstrando,
dessa forma, a influência da Rosa Cruz Universitária, e o período em que a
AMORC não estava precisando se defender de acusações.
O rosacrucianismo possuía outras
entidades que usavam a marca Rosa Cruz, mas a Rosa Cruz Universitária foi a que
mais estava interessada em estabelecer um elo de contato entre a afirmação institucional
e a autoridade desta iniciativa. Por muito tempo, o rosacrucianismo estava tutelado
por entidades paramaçônicas e a “libertação” foi simbolicamente assegurada pela
Ordem Rosa Cruz do Templo e do Graal, considerando que a Ordem Cabalística da
Rosa Cruz, estava sofrendo com estes conflitos internos. Consoante a Ordem fundada
por Dantine não fosse um fiel escudeira em termos doutrinários à sua suposta antecessora,
por usos de teurgia em suas lições, ela firmou a marca Rosa Cruz e não foi dissidente
de outra entidade, como por exemplo teosofia, igreja gnóstica, dentre outras.
CONCLUSÃO
A Ordem Rosa Cruz Universitária
representa, no século XX, a continuidade da autenticidade do rosacrucianismo iniciado
com a Ordem Cabalística da Rosa Cruz. Porém, o rosacrucianismo primitivo
tentado pelos alemães no século XVII, como alternativa à Reforma luterana, não
recebe a devida continuidade. A evolução doutrinaria da Tradição Primordial, baseada
na Cabala e Alquimia, principalmente, talvez também não tenha sido respeitada diante
das acusações de comunicações astrais, mas institucionalmente o rosacrucianismo
estava perdido e dependente. A iniciativa de institucionalização acobertou a
marca Rosa Cruz diante de outras entidades diversas.
As dificuldades entre as
propostas rosacrucianas estavam para além das características espiritualistas,
a disputa pela referência e autoridade foi um campo de batalha nesta nova configuração.
Com a FUDOSI como exemplo, a tentativa de regularização dos movimentos místicos
teria que ter a Rosa Cruz como sendo a liderança e síntese do misticismo. As
narrativas dos autores podem estar sujeitas a estas disputas. Porém, a presença
decisiva para começar e encerrar as atividades desta organização esteve a depender
de Dantine, elemento de união entre os interesses dos americanos e europeus,
defensor da marca Rosa Cruz nas três ordens que criou e interrelacionou.
A Ordem Rosa Cruz Interior, ou
Universal, ao usar os três graus da Ordem Rosa Cruz do Templo e do Graal, como sendo Altos Graus,
pela FUDOSI eram graus suplementares à AMORC na Europa. Este ensino, como sendo
suplementar, demonstra a autoridade que Dantine tinha na ocasião da formação da
federação, colocando a Europa, em comparação com as Américas e o Oriente, como
sendo o centro do esoterismo mundial. As disputas pelo poder e a afirmação da
AMORC pelo mundo fez com que esta determinação perdesse a validade e a FUDOSI
foi encerada. Porém, a atuação da Ordens Rosacruzes de Dantine foram um elo indispensável
para a afirmação do rosacrucianismo em seu continente de nascimento.
Saluctem Punctis Trianguli
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MCINTOSH, Christopher. Os mistérios da Rosa-Cruz. Tradução de Ayudano Arruda. São Paulo: IBRASA,1987.
REBISSE, Christian. Rosa Cruz História e Mistérios. 2 ed. Curitiba: Grande Loja da Jurisdição portuguesa, 2012.
SABLÉ, Erik. Dicionário dos Rosa-Cruzes. Tradução de Renata Maria Parreira Cordeiro. São Paulo: Madras, 2006.
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