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sábado, 22 de maio de 2021

A ROSA CRUZ DE OURO OU DOURADA E ROSA CRUZ DO SÉCULO XVIII- REFORMULAÇÕES E DEPENDÊNCIAS DO IDEÁRIO ROSACRUCIANO.


 

O ideário rosacruciano na segunda metade do século XVII, por motivos não muito bem esclarecidos, foi desvanecendo. Talvez o acirramento da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a posterior reorganização da Europa, assim como a reafirmação das confissões cristãs, oferecendo um apropriado conforto espiritual à população cansada da guerra, tenham sido causas que afastaram o interesse à alternativa rosacruciana. A falta de missionários, a extrema misteriosidade e a invisibilidade institucional não ajudavam ao ideário rosacruciano a sair do campo do imaginário. A tentativa de Peter Mormius em reformular o rosacrucianismo e inventar uma Ordem Rosacruz foi imediatamente desfeita por sua própria ambição. A tal Rosa Cruz de Ouro, de Frederico Rosa, não convenceu, mas foi decisiva no abandono do apelo cristão, comuns nos Manifestos Fama e Confessio e nos autores supostamente rosacruzes, a exemplo de Robert Fludd, na Inglaterra e do autor do Terceiro Manifesto, o Bodas Alquímicas,  de Valentim Andrea, na Alemanha. O interesse do rosacrucianismo estaria devotado, após as reformulações, à alquimia e à cabala de cunho adivinhatória e de encantamento.

Não havia uma instituição organizada rosacruciana para recepcionar pessoas identificadas com esta filosofia ou alternativa religiosa. A ausência de rosacruzes na Europa incomodava os maiores entusiastas, inclusive rumores diziam que estes místicos foram para Ásia, tentando com isso manter aceso o ardor daqueles que sonhavam com a fraternidade. A sociedade europeia estava ansiosa por uma instituição que de modo escolar transmitisse o know how alquímico-cabalístico, que produziriam elixires e mapas astrais. São estes alguns motivos que faziam autores que se associavam ao rosacrucianismo receber considerável fascínio nas cortes. Na falta de comprovação cabal da existência de uma Ordem Rosacruz concreta e de reconhecida pertença de pessoas que demonstravam suas incríveis capacidades, o rosacrucianismo estaria ameaçado pela falta de tateabilidade. O elemento sintetizador das práticas ocultistas estava prestes a se perder, mas a possibilidade criar ouro por meio da alquimia ou de receber a cura de certas doenças, ou até manipular o tempo, não fazia desaparecer o imaginário rosacruciano. Estas eram parte das promessas que faziam com que os europeus de todos os estratos sociais mantivessem o sonho, apesar da falta de qualquer indício.

Contextualizados com estas demandas, os escritores de rosacrucianismo alteraram, muito sabiamente, a proposta da suposta ordem, a deixando associada apenas a cunho materialista. Desse modo, a alternativa cristã proposta por “Christian Rosenkreutz” foi substituída pela proposta mais alinhada ao ocultismo, de “Frederico Rosa”, a fraternidade ou sociedade Rosacruz, ou Colégio Invisível, foi redimensionada para a Rosa Cruz de Ouro, destacando aquilo que mais interessava aos postulantes. Esta proposta não recebera o devido apoio em sua terra de origem, a Holanda, mas sua essência, de fator pragmático e materialista, foi utilizada naquilo que seria entendido como um novo rosacrucianismo a partir do século XVIII nos mesmos territórios em que foram férteis aos Manifestos.

A PREVALECÊNCIA DA ALQUIMIA PARA O ROSACRUCIANISMO DA DOURADA E ROSACRUZ.

A prática da alquimia era um dos proponentes da Tradição Primordial, sendo, porém, seu instrumental. Para além da adivinhação pelos astros ou pela cabalística, a alquimia fornecia, pelo naturalismo, curas para doenças ou rápida aquisição de ouro. Em suma, com a alquimia um indivíduo poderia ter saúde e riquezas. O rosacrucianismo referente aos Manifestos do início do século XVII estava influenciado pelo pietismo cristão em sua essência, a alquimia espiritual prevalecia sobre qualquer promessa material. Apesar de autores entusiastas, como Michael Maier, escreverem sobre a possibilidade alquímica que tanto fascinava as cortes, estes não devem ser considerados como representantes de uma Ordem Rosacruz, pois além de não estarem de acordo com a espiritualidade dos Manifestos, não estavam filiados assumidamente a qualquer fraternidade ou sociedade Rosacruz.

A alquimia do rosacrucianismo inicial, para Cristopher McIntosh, no seu Mistérios da Rosacruz, era uma prática ressignificada relacionada à mudança de comportamento do indivíduo, ou seja, uma transmutação espiritual. Esta era ideia de Julianus de Campis em Sendbrieff (1615), pseudônimo provável de Julius Sperber (1540-1616), considerado um dos escritores do Fama e do Confessio, que fazia de a alquimia trabalhar o material do espírito. A tática de promoção do rosacrucianismo como movimento alquímico teria sido iniciado por Michael Maier, que buscando afirmação junto aos reis europeus, principalmente o esoterista Jaime I da Inglaterra, dizia que os rosacruzes tinham a produção do ouro material. A defesa era feita na esfera de que era uma irmandade de médicos e químicos, mas não estabeleciam local de reunião, ou como descreve McIntosh, não lança luz sobre a fraternidade propriamente dita (1987:58). Consoante Eric Sablé, em Dicionário dos Rosa Cruzes, Sperber era um profeta que recebera em sonho a revelação de 1596, que dizia estar próximo o retorno de Elias, a Era do Espírito Santo, com uma grande reforma no início do século XVII pois tudo estava mudando com a religião e a ciência. Um colégio de sábios, por ele fundado, formaria pessoas dedicadas ao estudo e a prece. A Tradição Primordial também era defendida por Sperber, que acreditava que o conhecimento de Adão estaria preservado por iniciados por toda a história até então, o curioso é que Sablé afirma que Sperber condenava os Manifestos como um roubo de suas ideias, desconsiderando-o totalmente como sendo um dos colaboradores (2006: 279). Para Christian Rebisse, autor de Rosa Cruz História e Mistérios, livro editado pela AMORC, Julius Sperber era um defensor da Ordem Rosacruz como sendo a detentora do saber secreto de Adão (2012:153). A crença da prática centrada na alquimia também faz parte de Ireneaus Agnostus, pseudônimo de Friederick Grick, o qual McIntosh desconfia ser um embusteiro, pois em momentos se dizia ser participante da fraternidade, manipulando a pedra filosofal, mas em outros momentos zombava daqueles que acreditavam na existência da tal fraternidade (1987:59). A corrente de Maier e Agnostus (Grick), que também defendiam a doutrina da Tradição Primordial, prevaleceu sobre a corrente influenciada por Speber e o materialismo foi a tônica do apelo rosacruciano, principalmente no período de crise pós Guerra dos Trina Anos que causou sérias devastações.

Neste ínterim, é simbólico o exemplo de Joachim Morsius (1593-1643), ilustrado por McIntosh, como sendo evasiva a mentalidade fantástica dos crentes no rosacrucianismo. Interessado em conhecimentos esotéricos e alquímicos, Morsius destruiu suas economias. Buscou fazer parte da fraternidade Rosacruz mandando as famosas cartas, mas nunca recebeu respostas. Conheceu Andrea e Jacob Boehme (1575-1624), este considerado verdadeiro rosacruz, que o aconselhou a buscar a reforma em Cristo. Para McIntosh, Morsius talvez tenha falhado em sua busca, mas o sonho continuaria a ser alimentado por outras mentes (1987:61). A defesa de uma Ordem Rosacruz não era interessante, exceto se quem a defendesse recebe algo em troca, como por exemplo fama literária ou reconhecimento nas Cortes. Para quem buscava fazer parte da suposta fraternidade, de modo sincero ou não, a jornada era um imenso vazio. Porém, esta existia nos escritos de autores perspicazes, como por exemplo Peter Mormius, que criara a Ordem Rosa Cruz de Ouro, em 1630, na Holanda, desconsiderando o Christian Rosenkreutz dos Manifestos e favorecendo um novo fundador, o Frederico Rosa, que será a nova referência para as misteriosas práticas rosacrucianas embasadas na alquimia, especialmente a transformação em ouro. Os holandeses não acreditaram na invenção de Mormius, principalmente os de Haia, aos quais tentou vender os conhecimentos a ele confiados pelo restrito grupo de três rosacruzes da Ordem Rosa Cruz de Ouro (2006:243-244). A aventura de Mormius não poderia ser considerada como a fundação de uma instituição, ao limitar o número máximo de três componentes para a Ordem de Frederico Rosa, estava se omitindo de qualquer associação direta com esta Ordem, pois seria apenas um famulus. Provavelmente, se sua falácia fosse bem aceita nos meios da alta sociedade holandesa, lhe seria dado tempo para elaborar sua instituição de modo mais organizado e concreto. Não havendo êxito, Mormius tenta carreira literária oferecendo os segredos a ele confiados. Independentemente dos meios utilizados por Mormius, não houve violência dos holandeses à sua atitude em usar a marca Rosacruz. Esta tolerância ao rosacrucianismo foi comum também na Alemanha e na Inglaterra, pelo menos. Na França, a resistência era passível de ridicularização, pois não havia nada além dos Cartazes de Paris.

Para McIntosh, o Rosacrucianismo alquímico ficará num rápido ostracismo e será reutilizado na sociedade alemã com a publicação do livro A Verdadeira e Completa preparação da Pedra Filosofal da Fraternidade, da Ordem da Dourada Rosa Cruz, em 1710, escrita por Sincerus Renatus, alcunha para Samuel Richter, pastor na Silésia, profundo interessado em alquimia e medicina (1987:75). O nome desta Ordem é anunciado diferente no livro de Rebisse, chamada de Fraternidade da Ordem da Rosa Cruz de Ouro e da Rosa Vermelha, ou apenas Rosa Cruz de Ouro (2012:201). A inserção oficial da Rosa Vermelha como sendo um símbolo rosacruciano parece ser deste tempo. O livro seria uma descrição feita por um professor de arte, que Sincerus não revelou quem seria e revelava regras do que McIntosh denominou de pretensa ordem rosacruciana (1987:76). Dentre as regras, havia detalhes da iniciação, votos e cumprimentos, confessa ainda que havia um Imperator vitalício que mudava de nome e cidade periodicamente. A Pedra Filosofal era manipulada pelos irmãos, mas nenhum morava na Europa e sim na Índia, velho ardil para esconder a inexistência da pretendida instituição. Para além disso, dizia que a Ordem recebera influência de uma ordem alquímica dos inseparáveis, fundada em 1577, que de acordo com Rebisse parece não ter existido (2012:201). Aliás, Rebisse parece crer que a Rosa Cruz de Ouro estava instituída em 1710 pois está numa linha de tempo que culmina com a fundação da AMORC, mas a falta de indícios e inconsistências faz com que permaneça a suspeita de pretensa Ordem feita por McIntosh. A ideia de um Imperator, por exemplo, provavelmente tenha em Sincerus a influência para este título utilizado pela AMORC, justificando a sua menção como parte de uma história unificada, mas importa saber o motivo da omissão do pretendido primeiro Imperator Francis Bacon, caso houvesse esta uniformidade.

Percebemos que o intuito de nomear um mito fundador está perdido para o rosacrucianismo na primeira metade do século XVIII, a Ordem Rosa Cruz de Ouro, de Sincerus Renatus, não apela nem para Christian Rosenkreutz nem para Frederico Rosa, mas a um inominável professor de arte, colocando ainda a Ordem secundarizada pela ordem alquímica dos inseparáveis. A secundarização do rosacrucianismo também fez parte na influência para o aparecimento de uma ordem Rosacruz, termo utilizado por Rebisse, a partir da atuação de Herman Fictuld (1700-1777), alcunha de Johan Heinrich Schmidt (2012:202). O livro de Fictuld, O Tosão de Ouro, lançado em 1749, relata uma Ordem, fundada a cerca de 1492, a Tosão de Ouro, que deixara como herdeira uma sociedade dos rosacruzes de ouro. Para Sablé, Schimidt era boêmio e autor de várias obras de alquimia, em 1747 conhecera uma fraternidade secreta de alquimistas, a Dourada Rosa Cruz (2006:247-248). Esta misteriosa e secreta fraternidade está denominada por McIntosh como Dourada e Rosa Cruz, não sendo, aliás, uma sociedade ou fraternidade propriamente dita, mas uma ramificação maçônica (1987:86). Subordinada à Maçonaria, esta entidade, ou círculo de estudos, ou quiçá, um triângulo maçônico, estava localizada no ducado alemão de Salzbach, trabalhavam com alquimia, cabala e ocultismo, ou seja, era essencialmente rosacruciana. Esta fraternidade de estudos era nacionalista, conservadora e elitista, além do cunho esotérico, e estavam reunidos em torno da discrição maçônica. Por motivos não esclarecidos, as autoridades austríacas decidiram perseguir a Dourada e Rosa Cruz. Na teoria defendida por McIntosh, o verdadeiro texto fundador para esta entidade fora o Opus Mago-Cabalisticum et Theologicum, de Georg Von Welling, lançado em 1719 na cidade de Frankfurt, com texto de difícil compreensão, mas que fez um pouco de fama (1987:92-93). Após as perseguições de 1766, a Dourada e Rosa Cruz foi associada totalmente à Maçonaria, que se tornara um sistema de Altos Graus e Ritualística reservado apenas aos Mestres Maçons. No ano de 1767 foram lançados os nove graus rosacrucianistas com a promessa de conhecimentos para transformar qualquer quantidade de ouro com sua pedra filosofal (1987:95). A pretensa institucionalização da Rosacruz sofreria mais este decalque, além de secundarização das origens, a novidade era de diluição da autonomia e da caracterização individual.

A Dourada e Rosa Cruz seria uma sociedade de chamariz caça-níquel ao prometer enriquecimento para seus participantes. O rosacrucianismo espiritualista e interessado por temas cristãos foi reformulado por aquilo que mais interessava à população em geral, a alquimia e a transformação pela pedra filosofal de qualquer coisa em ouro. A temática e a nomenclatura do ouro seria marca durante o século XVIII daquilo que se propusera rosacrucianismo. A Rosa Cruz Dourada, de Sincerus, e a Dourada e Rosa Cruz, de Fictuld, de finalidades e puerilidade em comum, não foram competentes para firmar uma canonicidade que marcasse a fundação de uma instituição Rosacruz, tal como desejam os que a buscavam e a imaginavam. O rosacrucianismo do mito fundador dos Manifestos estava inadequado para estes tempos, a pluralidade de mitos fundadores e o oportunismo de embusteiros influenciaram na imprecisão e envilecimento da ideia.

CONCLUSÃO

O rosacrucianismo, no século XVIII, estava reformulado em suas intenções, mas continuava sem uma institucionalização materializada em Templos ou formação de Loja, tal como esperavam os entusiastas. Com a finalidade baseada quase que exclusivamente no projeto alquímico, a ideia estava contaminada com a ambição pelo vil metal. Não havendo uma Instituição, pessoas criaram associações fantasiosas.

O rosacrucianismo, para o novo tempo, estava afastado de sua ideia original cristã e espiritualista. A ideia principal estava focada na produção de ouro, dentre outras maravilhas. Para isso, mudaram o nome do mito fundador, criando uma entidade indiferente ao espiritualismo, como foi a invenção do alquimista Frederico Rosa pela suposta Rosa Cruz de Ouro, de Peter Mormius, ou a secundarização da Ordem Rosa Dourada, despojo de outra ordem , a dos inseparáveis, provavelmente invenção por Sincerus Renatus. Deste modo, temos o mito de origem sem identidade de um fundador e ainda dependente de uma entidade mais velha. Esta nova ideia de rosacrucianismo é diferente do que se pretendia nos Manifetos, pois havia a identidade de um fundador, o Christian Rosenkreutz, uma essência cristã e uma originalidade “institucional”, a Fraternidade Rosacruz seria fundada pelo recipiendiário da Tradição Primordial.

Para além de não constituir uma entidade material, institucional e documental, o que estava sendo entendido por rosacrucianismo foi diluído como sendo um Rito maçônico pela Dourada e Rosacruz , de Herman Fictuld, sintetizando toda mesquinharia e atiçando a cobiça de pessoas com a promessa de que sabiam fazer ouro, meta e propaganda, aliás, comum desde a invenção da Rosa Cruz de Ouro, que influenciou, possivelmente, a Dourada e Rosa Cruz ou Rosa Cruz Dourada. Porém, a Dourada e Rosa Cruz não deve ser honestamente entendida como sendo uma Ordem ou Fraternidade tipicamente Rosacruz, ela é parte da instituição maçônica, dependente desta, como sendo uma alternativa ritualística, baseada ainda no apelativo aurífero charlatão. 

E.L. Mendonça
À.G.D.G.A.D.U.
Saluctem Punctis Trianguli

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MCINTOSH, Christopher. Os mistérios da Rosa-Cruz. Tradução de Ayudano Arruda. São Paulo: IBRASA,1987.

REBISSE, Christian. Rosa Cruz História e Mistérios. 2 ed. Curitiba: Grande Loja da Jurisdição portuguesa, 2012.

SABLÉ, Erik. Dicionário dos Rosa-Cruzes. Tradução de Renata Maria Parreira Cordeiro. São Paulo: Madras, 2006.


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