A Tradição Primordial é uma conceituação rosacruciana para
definir a herdade dos ensinamentos místicos da Ordem. Com os conhecimentos,
denominados Gnose, a doutrina Rosacruz amplia e oferece esta Sabedoria a
todos os iniciados. A análise deste conceito discute, de modo resumido, a construção
e sua utilização no terreno da Ordem Rosacruz. A Tradição Primordial, com seus
saberes místicos, constitui uma continuidade do hermetismo na hodiernidade.
A TRADIÇÃO PRIMORDIAL E O MOVIMENTO ROSACRUCIANO
O Rosacrucianismo possui um arcabouço doutrinário baseado em
uma antiguidade que discursivamente legitima sua origem sob fundamentos
egípcios e gregos. Estas Civilizações são a base da filosofia esotérica
ocidental, assim como as influências judaicas cabalistas e outros
orientalismos. A literatura Rosacruz (AMORC) defende que esta fundamentação
está baseada num conjunto de conhecimentos sintetizado na Tradição Primordial,
apanhado esotérico que alinha alquimia, magia e astrologia. O elemento fundador
da Ordem Rosacruz apela para a sabedoria da Tradição Primordial cujo herdeiro, detentor
e difusor, ou ao menos sua referência, será Christian Rosenkreutz.
Conceitualmente, Tradição é uma doutrina ou prática
transmitida de século para século, pelo exemplo ou pela palavra. Como herança
do passado, a tradição é um produto que continua sendo aceito no presente,
independente do tempo. Para Kalina Silva e Maciel Silva, no Dicionário de
conceitos históricos, sociologicamente, a tradição tem como função preservar
costumes e práticas eficazes, testadas pelo tempo (2010:405). O senso de
validação, firmeza e preservação é a caução legitimadora que credencia a
tradição como sendo eficaz apelo meio argumentativo.
Filosoficamente, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes realçam
que a tradição seria a garantia da consciência histórica de uma cultura
(2006:269-270). A conscientização, portanto, é uma das características da
preservação da identidade, baseada por bem na tradição. Ampliando o conceito,
Abbagnanno entende que tradição seja a herança cultural que filosoficamente é o
reconhecimento da verdade, assim como sua garantia e às vezes a única
garantia possível. A sabedoria antiga são relíquias que devem ser
desmistificadas e a todo tempo autenticadas. Na falta de documentos autênticos,
os fictícios eram criados, as mais famosas foram de Hermes Trismegisto,
que tentam, ainda que fraudulentamente, fundamentar o prestígio e a garantia da
tradição (2000: 966).
A tradição invoca a noção de primordialidade, que deve ser
constantemente velada para que não seja corrompida por inovações ou deturpações. Nisto
consiste a Verdade e a afirmação de uma razão sociológica, filosófica e
histórica. A doutrina que está fundada na tradição possui uma autoridade,
independente de tempo e ideologias, que afirma sua identidade, consciência e
perenidade. A Tradição Primordial é uma das bases discursivas das escolas
iniciáticas, tomando o exemplo dos Mistérios egípcios e gregos, se comportam
como reveladores de conhecimentos que ajudam o homem na compreensão do mundo, e
da humanidade.
CONCEITUAÇÃO DOUTRINÁRIA DO TERMO “TRADIÇÃO PRIMORDIAL” NO ÂMBITO ROSACRUZ.
Na doutrina Rosacruz (AMORC), de acordo com o Glossário
dos termos rosacruzes, a Tradição Primordial é a fonte de toda Sabedoria
acessível ao ser humano, Gnose que era ensinada oralmente em reuniões
secretas realizadas em Templos consagrados; esta Sabedoria, no início do
século XX, foi registrada por escrito e fundamenta os ensinamentos rosacruzes
pela AMORC perpetuados (2015:290).
A Ordem Rosacruz entende que esta
herança sagrada, recebida das escolas de mistérios do Egito Antigo,
servia à místicos com o intuito de desvendarem os mistérios do universo, da
natureza e do homem. Estes conhecimentos, segundo o AMORC em perguntas e
respostas , foram aperfeiçoados pelos filósofos da Grécia antiga e pelos
mesopotâmicos. A gnose secreta foi utilizada pelos alquimistas
rosacruzes da Idade Média, Renascentistas e Espiritualistas (1997:72;81).
A Tradição Primordial compreende uma Gnose que era cuidadosamente
ensinada a uma elite de capacitados, por isso as reuniões secretas. O sistema
esotérico tinha como finalidade expor conhecimentos de modo iniciático para que
fosse preservada as informações recebidas, seja de deturpações individualistas
seja de exploração popularesca. O lugar de origem desta Sabedoria é o Egito
Antigo, mas sua evolução está situada na Grécia Antiga e Mesopotâmia. Com a
ideia maturada, esta Gnose foi aplicada pelos alquimistas rosacruzes
medievais, posteriormente por Renascentistas e Espiritualistas. A serventia desta
ciência estava em desvendar os mistérios do macrocosmo e do microcosmo.
O conceito de Gnose empreende uma noção de
especialidade da Sabedoria, revelada por iniciados de modo secreto e associado
a uma mística intuitiva. Na concepção de Abbagnanno, no Dicionário de
Filosofia, o termo derivou a palavra gnosticismo, filosofia que misturava,
nos primeiros séculos da Era Cristã, cristianismo e paganismo. Apesar de estar
difundida no Ocidente e no Oriente, o agnosticismo foi conservado por escritos
coptas, que aventam uma certa origem egípcia, além de estar espalhado por
livros apócrifos do cristianismo. Para os gnósticos, o Conhecimento, ou Gnose,
era um esclarecimento necessário à salvação, pois o mundo, porém criado pela
união do bem e do mal, está marcado pelo domínio das trevas (2000:485). Na
doutrina Rosacruz, a ênfase é dada ao Egito Antigo e esta “Gnose” recebe uma
narrativa ao modo dos esoterismos típicos do pensamento medieval, não à toa o
termo alquimia está sempre presente.
Desse modo, entendemos que a principal disciplina da
Tradição Primordial é a Gnose, aparentemente ensinada no Egito Antigo,
de onde principiou. Esta antiguidade, relacionada à Rosacruz, foi
historicamente defendida por Michael Maier ( 1568- 1622), médico, filósofo e
alquimista alemão, escrevendo em Silentium post clamores (1617) que o
rosacrucianismo é egípcio, bramânico, dos mistérios de Eleusis e da Samotrácia,
dos magos persas, pitagóricos e árabes; na versão de Ireneus Agnostus, no A
égide da verdade (1618), Adão foi o primeiro representante da Ordem. Como
expõe Christian Rebisse, em seu Rosacruz: História e Mistérios, os
manifestos Rosacruzes defendem a Sabedoria milenar consoante com o que Adão
herdou após a Queda e que foi praticada por Moisés e Salomão (2012:18). A
referência bíblica, dos Manifestos e de Agnostus está contextualizada com a
mentalidade cristã europeia que tem na pessoa de Adão o pai de toda a
humanidade. A ideia de ancestralidade é fundamental para a validação e
seriedade do argumento conceitual relacionada à Tradição Primordial. A ideia de
que Adão recebera a Gnose também foi defendida por Julius Sperber no
livro Eco da fraternidade iluminada por Deus, de 1615, sendo que Adão
ensinara a sabedoria divina e através de Noé e dos Patriarcas chegara a Zoroastro.
Esta sabedoria é conhecida pelos caldeus, persas e egípcios, sendo preservada,
finalmente, pela cabala judaica.
O instrumental desta Sabedoria seria a alquimia, tema do
terceiro Manifesto Rosacruz, As Bodas Alquímicas de Christian Rosenkreutz (1616).
A alquimia, tradicionalmente tida como mudança de pedra em ouro, dentre outros
mitos, possui uma nova dimensão de intepretação de cunha espiritualista
rosacruciana. O texto do Terceiro Manifesto doutrinava que, segundo Radtichs
Brotoffer, autor de Elucidarious Major (1617), a busca do ouro é um dos
males do mundo. Para Christopher McIntosh, em Os Mistérios da Rosa-Cruz,
o maior entusiasta da relação entre alquimia e rosacrucianismo foi o acima
citado Michael Maier, médico de Jaime Stuart I, rei da Inglaterra a quem dedicou
um livro, o Arcana Arcaníssima (1614), sendo que este monarca era muito
interessado em temas relacionados ao hermetismo. Foi de Maier, no livro Themis
Aurea (1618) a ideia de que os
rosacruzes eram químicos na concepção do termo e também médicos (1987:58). O
hermetismo é derivado de uma representação denominada Hermes Trismegisto,
amálgama entre o deus Hermes, grego, e o deus Toth, egípcio. Esta personalidade
teria sido o “decodificador” da Tradição Primordial, ou pelo menos seu compilador,
escrevendo textos embasados no gnosticismo e encorajando os homens a dominar a
natureza através da alquimia hermética, que capacitaria o estudante a
curar doenças (1987:29). A crença na cura de doenças, por exemplo, fazia do
hermetismo a moda nas cortes europeias. A própria alquimia estava repleta de rumores,
como a pedra filosofal ou elixir da juventude, com muitos autores e médicos, a
exemplo de Maier, defendendo que eram os rosacruzes, de modo secreto, os
detentores da arte da alquimia hermética. Porém, como já exposto, nem
todos os escritores que se dedicavam ao tema Rosacruz defendiam esta posição de
transformação dos elementos, apenas acreditando, por outro lado, que esta
alquimia estava cercada de simbolismo espiritualista.
A influência egípcia e do helenismo foi essencial na
formação do denominado Corpus Hermeticum, ou textos de autoria de Hermes
Trimegisto, que de acordo com Rebisse, não oferece uma doutrina coesa e seus
ensinamentos gnósticos são esparsos, marcados com filosofia grega, judaísmo e
cabala judaica (2012:25). O hermetismo, desse modo, é mais adequado a uma
qualidade de saberes dispersos do que a uma doutrinação propriamente gnóstica.
A relação entre Tradição Primordial, hermetismo e o instrumental alquímico está
intrínseco à expansão islâmica, que recebeu as tradições místicas helenistas e
as levou para o imaginário ocidental. Neste contexto, foi acrescentado a
astrologia ao arcabouço dos saberes herméticos.
O autor Christian Rebisse possui sua obra editada pela
Grande Loja da jurisdição portuguesa da AMORC, então podemos entender que esta
obra possui, mesmo que indiretamente, a versão oficial ou aceita pela
instituição Rosacruz AMORC. De acordo com o autor, a tomada de Alexandria pelos
árabes em 642 foi um marco para que o islã fosse “sincretizado” ao hermetismo.
Um dos sinais deste sincretismo foi a adoção da astrologia dos sabeus, povo que
habitava o território denominado pelo Alcorão de Arábia Feliz (Iêmen). Este
povo seria conhecedor também da alquimia e do Corpus Hermeticum,
inclusive um sabeísta de Bagdá, Thâbit ibn Qorra, recebera uma redação do
próprio Hermes denominado Carta sobre a Alma (século IX). O nosso autor
também apresenta o profeta Idris, mencionado no Alcorão, como se fosse Hermes
ou Enoque, ou O mediador, Al-Khezr, mestre iniciador de Moisés. Além da
interação entre Hermes e hermetismo, comuns na tradição do Alcorão, Rebisse
relaciona o astrólogo islâmico, famoso na Europa (século VIII), Albumassar, ao
hermetismo, este fizera uma linha de tempo que reconhecia a existência de três
Hermes: o antediluviano, que seria o mesmo que Toth; o Hermes babilônico,
mestre da matemática, medicina e filosofia; e o último dos Hermes, o ocultista
e alquímico . A Alquimia árabe, de acordo com Rebisse, foi herdada, na verdade,
dos iranianos e a astrologia dos gregos, hindus e cristãos-sírios (2012:
31-36). O diferencial na contribuição dos islâmicos foi tentar associar os
experimentos de laboratório com a dimensão mística e filosófica. O
rosacrucianismo AMORC oferece, atualmente, esta mesma afluência entre ciência e
misticismo, não havendo uma definição eivada de cientificismo.
A PHILOSOPHIA PERENNIS E A FUNDAÇÃO DO ROSACRUCIANISMO
A tradução do Corpus Hermeticum, feita por Marcelo
Ficino (1433-1499), editada em 1471, fez difundir a crença de que os textos
eram originalmente egípcios, teoria reforçada pelo próprio tradutor, que em seu
livro Teologia Platônica (1474) fez uma genealogia de filósofos que
começa com Hermes, Zoroastro, Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras e Platão. Foi neste
contexto, que o hermetismo começara a ser considerado como sendo Tradição
Primordial. De acordo com Rebisse, a Tradição Primordial é uma revelação
primeira que se teria perpetuado de era em era, de iniciado a iniciado
(2012:46). A Tradição Primordial será chamada de Philosophia Perennis com
Agostino Steuco (1498-1548), contextualizado com a afirmação política e
econômica de Florência e Toscana, que faria da língua toscana mais influente
que o latim. Para isso, os políticos incentivaram mitos de origem para aliar
Noé a Hermes na fundação da Etrúria (Toscana) e para isso aproveitaram os
escritos de Ficino sobre Hermes Trimegisto, argumento válido para a época
devido os mistérios e a fama do hermetismo.
A Alquimia, instrumental do hermetismo, foi cobiçada por
príncipes alemães, diante da situação de falta de unidade territorial e
consequente enfraquecimento da influência papal nos territórios. Não fazia
parte desta compreensão de alquimia da transformação dos elementos em ouro, mas
em transformar a natureza humana através da cura dos homens. O arcabouço teórico desta
doutrina era, em muito, retirado do neoplatonismo de Plotino. Um dos principais
teóricos da alquimia na Alemanha foi Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von
Hohenheim (1493-1541), ou Paracelso, com sua teoria de que a natureza ao ser
desvendada serviria ao homem em sua cura das enfermidades. No seu livro Liber
de resurrectione et corporum glorificatione (1533), Paracelso defende que o
homem regenerado seria transformado, por transmutação alquímica. De acordo com
Rebisse, os símbolos da cruz e da rosa seriam, neste livro, insistentes
(2012:55). Suas ideias de fazer a interação homem e natureza, a cura das
enfermidades relacionadas ao conhecimento de leis naturais através da recepção
espiritual do homem, faria eco aos Manifestos Rosacruzes e na compreensão moderna
de rosacrucianismo.
CONCLUSÃO
A Tradição Primordial é o recurso utilizado pelo esoterismo
ocidental para atestar a veracidade de sua narrativa diante de todo o conhecimento
místico. Indiferente a toda derivação filosófica que fundamentara as crenças e
estruturas de culto, a Tradição Primordial, apoiada em sua ancestralidade, é uma
narrativa autoritativa que fornece a verdade inalterada pelas escolas de Mistérios
iniciáticas. A pureza deste conhecimento está, ainda, no conceito de Philosophia
Perennis, uma espécie de constatação de que esta Sabedoria é, além de inalterável,
a base de toda filosofia ocidental, pelo menos.
A principal disciplina da Tradição Primordial é a Gnose, além
do mais, conjunto de doutrina que explica à humanidade os motivos de sua existência
e efetividades. O gnosticismo era o suporte teórico dos textos, muito esparsos
e sem uma doutrina bem definida. O Corpus Hermenticum ou hermentismo, são textos anônimos que para
darem validade autoritativa atribuíam a Hermes Trimegisto. Este personagem foi
um mito criado para, além de validar tais textos, afirmar a ancestralidade por
meio de uma assinatura identitária que representasse o helenismo, centralizado no
Egito pela afamada cidade de Alexandria. Com o domínio muçulmano, esta cultura
hermetista foi incrivelmente associada ao Alcorão por alguns autores de influência
e com o uso da alquimia medicinal pelos árabes, esta se tornou o instrumental
que uniria as cortes europeias ao hermetismo. A medicina “alquímica” feita por árabes
muçulmanos, mas que associada ao hermetismo, fizera teóricos europeus entenderem
que o hermetismo seria uma ciência independente do cunho confessional maometano.
Porém, a narrativa hermética não estava isenta de religiosidade ou
espiritualidade, por sua própria natureza gnóstica. Desse modo, teóricos, como
por exemplo o médico Paracelso, construiriam uma doutrina dispersa que tentava
rivalizar com o Cristianismo, à época de uma crise de consciência por causa da
Reforma Protestante. Com a associação de ideias de pensadores hermetistas espalhados
pelas cortes europeias, principalmente alemã e inglesa, seriam lançadas as bases
dos Manifestos Rosacruzes.
O desvelamento de que o Corpus Hermeticum era tão
somente textos, de fato, gnósticos heréticos sem qualquer relação com a
ancestralidade egípcia ou de qualquer outra civilização antiga, não foi suficiente
para abalar a estrutura da mentalidade hermetista. O movimento rosacruciano
aparará as arestas e tentará metodizar estes conhecimentos, sustentando a doutrina
da Tradição Primordial numa dimensão mais cristã protestante, ou crística. O
personagem Hermes Trimegisto seria sucedido por Christian Rosenkreutz, fundador
de uma nova Ordem , herdeira da Tradição
Primordial.
À.G.D.G.A.D.U.
Saluctem Punctis Trianguli
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ivone Castillho Benedetti.4 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
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MCINTOSH, Christopher. Os mistérios da Rosa-Cruz. Tradução
de Ayudano Arruda. São Paulo: IBRASA,1987.
PARUCKER, Charles Veja(coordenador). A Ordem Rosacruz AMORC
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SILVA, Kalina Vanderlei; Silva, Maciel Henrique. Dicionário
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