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sexta-feira, 19 de março de 2021

ANÁLISE DO DISCURSO "DEÍSTA" DO LIVRO: CHAVES DA ESPIRITUALIDADE MAÇÔNICA


 

Este estudo tem como propósito apresentar subsídios para a compreensão e reflexão da conceituação de espiritualidade no meio maçônico. O livro em análise, uma espécie de ensaio filosófico, merece ser criticado como opinião daquilo que se concebe como sendo identidade maçônica, relacionada à sua ideia de Deus e divindade. O título, inclusive, aborda de modo generalizado o que seria esta relação entre homem e Deus, o que caracteriza, geralmente, a espiritualidade.


 O PENSAMENTO RELIGIOSO: DEÍSMO E MAÇONARIA

O autor começa sua crítica esquematizando uma fórmula de rotulação histórica baseada em Giambattista Vico, filósofo italiano e considerado, no século XIX, como pensador Iluminista. A divisão de tempo, elaborada por Vico, concebia a história humana dividida em três épocas: deuses, heróis e homens. A primeira das eras é caracterizada pelos homens estúpidos, insensatos e horríveis animais, dominados pelos sentidos, paixões e desprovido de reflexão. Esta era a fase pré-racional ou época dos deuses, pois os homens em tudo atribuíam os fenômenos da natureza aos deuses. Com mente infantil, os humanos tinham a ideia de que as divindades eram terríveis e punidoras e os costumes eram salpicados de religião e piedade. A comunicação dos deuses, a exemplo de Júpiter, deus do trovão, para os homens estava baseado em augúrios da natureza. Este tipo de linguagem era de adivinhação, o que os gregos chamavam de Teologia, que quer dizer ciência de falar aos deuses.

O período dos deuses é sucedido pelo período dos heróis, caracterizado pela predominância da fantasia sobre a reflexão, onde a consciência racional ainda não amadurecera completamente. A estrutura social é baseada na autoridade indiscutida e indiscutível pois era expressão dos deuses e, a exemplo de Homero, era uma sociedade de ideal másculo e guerreiro, fascinado pelo sangue, costumes rudes e homens quais crianças pela franqueza da mente. Esta é sucedida pelo período dos Homens, a era racional. Escudado em Vico, o autor apresenta a nova sociedade, centrada no Homem. Esta é a Era de ampliação da mente humana e em que a plebe era de igual natureza que os nobres. Este novo pensamento, ou forma de pensar, é o das revoluções de emancipação social. A metafísica fantasiosa seria mudada a favor da metafísica racional. Nos períodos anteriores, a ideia de justiça e verdade era de sabedoria parca, mas no período dos homens a história baseia-se numa natureza racional que reconhece a consciência, a razão e o dever. Desse modo, a natureza humana é a base da igualdade, da justa sociedade e da razão.

O homem pré-moderno, com sua incapacidade de julgamento crítico, tentava aplacar as forças da natureza com orações, prendas e intervenções, a religião sobrenaturalista. Relacionado este tipo de homem, o autor apresenta os séculos XIX e XX e metodiza teístas de um lado e deístas e ateus, do outro. O discurso em unir deístas e ateus é muito importante para a mensagem subliminar, pois estão contrapostas duas vertentes de pensamento e não três, como deveria ser para o bom entendedor, pois o ateu não acredita em nenhuma forma de Deus ou pensamento religioso. Ressalvo que o autor, até o fim do capítulo, não fará nenhuma relação ou comentário sobre ateus ou ateísmo, ficando tudo à incumbência do deísmo e o contraponto teísta. Isso transparece que, na verdade, seriam mesmo duas vertentes em discussão: teísmo e deísmo-ateísmo.

O teísmo, sobrenaturalista, crê em milagres , curas sobrenaturais, Deus pessoal, graças, promessas, oferendas, encarnações (sic), escrituras e relíquias milagrosas sem critério de autenticidade. O teísta, de que a verdade revelada não pode ser reduzida a uma verdade racional é do de crença na revelação sobrenatural, que seria o conjunto de verdades (mandamentos) que são conhecidos do homem, mas que ficam reafirmadas por sua procedência divina, ou um conjunto de mistérios ( dogmas) inacessíveis à razão humana, mas aceitáveis em razão de constituir a palavra divina, o que irrita por demais um racionalista que somente aceita algo submetido à luz da razão. Contestando o conceito religioso de Revelação, o autor apresenta uma lista de sobrenaturalistas divididos em tradicionalistas, liberais, modernistas, dogmáticos (!), etc.

O teísmo, pelo método de argumento utilizado, está situado ne período negativado da história ou época dos deuses e dos heróis, sendo seu produto. Deste modo, encerra a contribuição da análise teísta. Segue-se o Iluminismo... A época dos homens é a da razão e liberdade de consciência, das informações, do serviço da inteligência e do livre pensamento. O autor, citando Ragon: a filosofia liberta o espírito de toda crença . A razão crítica, elenca o autor, é do conhecimento científico, melhora progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade, rejeitando a dogmáticos sistemas das religiões, defendendo o deísmo. Este deísmo, pensamento religioso moderno, é naturalista e racional, sendo o sobrenatural, irracional.

O deísmo, integrante do Iluminismo, é a religião racional e natural à qual se vinculou uma moralidade laica, é tudo e só aquilo que a razão humana pode admitir. Escreve ainda o autor que com relação a Deus, este criou o mundo físico e moral, e admite a vida futura que receberá julgamento pelo bem e pelo mal que realizou e cita Voltaire: Por religião natural devemos entender os princípios morais comuns a todo gênero humano. Porém, é bom neste momento fazer uma rápida análise conceitual. De acordo com o Dicionário de Filosofia, de Abbagnanno, esta assertiva de que o deísmo discursa sobre “vida futura e julgamento” é destoante com o pensamento de Voltaire. Como será discutido, o deísmo possui duas vertentes, a inglesa, original e mais levada ao “espiritualismo”, e a francesa, ou continental, mais materialista. Nesta concepção afrancesada de deísmo deve ser contextualizado Voltaire, que era de pensamento mais crítico às formas espiritualistas. Outra intepretação entende que o deísmo amadureceu no continente do século XVII ao século XVIII, sendo que a intepretação dada pelo Iluminismo francês, com Voltaire sendo o representante, a forma maturada desta teoria. O discurso apresentado pelo autor é de que as duas vertentes dialogam, com Voltaire sendo o porta voz, mas é esta ideia anacrônica.

O homem de espírito científico não entende que Deus seja a causa dos fenômenos naturais, mas como criador de suas causas, deixadas como Lei imutável e universal. O Deus do naturalismo religioso não é mágico ou passional, mas sábio criador. O homem moderno purifica seus conceitos religiosos e o Grande Criador do Universo, racionalmente, não faz prodígios em milagres e graças, como se fosse jogo pedagógico, baseado em orações e sacrifícios. As revelações típicas da época do período dos deuses e dos heróis, ou dos homens pré modernos, deram lugar às ciências médicas e psíquicas.

O deísmo, em sua forma radical, não há noção de Deus, nem de religião revelada, renegando o providencialismo, a graça e redenção. Outras correntes deístas excluem a noção de pecado ou de mal. O autor, neste caso, não especifica quais são estas correntes. O mais compreensível é de que seja o deísmo uma forma que foi evoluindo ao longo do tempo e finalmente encontra sua plenitude e lógica com a antirreligiosidade. O que não é, porém, admito no texto.

É interessante analisar como o autor trabalha a ideia de providencialismo e governo. Textualmente, Deus governa o mundo (Providência), que castiga os maus e recompensa os bons, inclusive na vida futura. Ora, este tipo de providencialismo no mundo não é deísmo. A ideia deísta é de que a natureza obedece às Leis deixadas por Deus, isto é estático e não há intervencionismo. As Leis da natureza são o governo do mundo, pois qualquer intervenção em sua perfeição faz de Deus uma pessoa que interage com a Criação. O castigo aos maus e recompensa aos bons é muito mais um “jogo pedagógico” do que uma “racionalidade” estática deixada à inteligência humana. O Deus intervencionista, pessoal e “pedagógico”, é um Deus Teísta. As atribuições teístas, neste caso, são transferidas, pelo autor, para o arcabouço teórico deísta.

A Maçonaria recebera do iluminismo e do deísmo a qualidade de abandonar sobrenaturalismos, dados agora como superstições. A liberdade de pensamento e tolerância religiosa, assim como o ideal de república democrática, combatendo os absolutismos, também estão entre as qualidades iluministas e deístas. Novamente citando Ragon, seria o deísmo a crença na existência de Deus sem revelação nem culto, ou a religião da razão. A defesa à liberdade de pensamento é devido a postura esclarecida e reflexiva perante a crença num Ente supremo, longe de fanatismo e obscurantismo. Como uma forma de não rejeitar completamente o teísmo em Maçonaria, o autor escreve que a entidade respeita o teísmo e o deísmo.

ANÁLISE DO CAPÍTULO

O pensamento do autor do livro está baseado nas definições deste capítulo. A teoria de que o deísmo possui virtudes espiritualistas, embasamento e apoio de maçons como Voltaire e Ragon, além da proteção dada contra o teísmo, são as bases utilizadas para enaltecimento deísta e sua adequação ao arcabouço doutrinário maçônico. O bom entendimento deste capítulo alerta ao leitor de que o autor defende uma nova concepção de fazer maçonaria.

O filosofo e historiador Giambattista Vico (1668-1744), dividindo a história, em 1725, na obra Princípios de uma Nova Ciência, não estava focado em criticar o teísmo ou suas formas, mas sim as formas de governo do mundo. O princípio religioso seria apenas uma das suas causas e não fator determinante. A era dos homens seria o ápice da filosofia engajada de Vico. De acordo com Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, no Dicionário básico de filosofia, Vico era crente na condição da natureza humana, capaz de governar de acordo com empatia e igualdade (2006:277). Para o História da Filosofia, de Bernadette Siqueira Abrão (org.), Coleção Os Pensadores, a teria de Vico não seria linear, como dá entender, mas cíclica. A República Romana, por exemplo, é o ápice, por sua forma de governo “racional”, da era dos homens. Porém, os vícios degeneraram os homens e o ciclo foi encerrado para dar início a outro, de repetições comuns (2004: 263). Desse modo, o engajamento do autor o faz entender que o sistema republicano é o topo do racionalismo. Mas os vícios humanos fazem o belo sistema falhar, ou seja, a natureza humana decai moralmente em ciclos e, apesar de imbuídos de razão, esta não é suficiente para o definitivo avanço da humanidade. Noutras palavras, a simples razão humana não é fundamento de estabilidade.

Para a definição acabada de homem pré-moderno, o autor faz um enquadramento teísmo-irracionalismo- regime opressor. O homem moderno, presunçosamente iluminista, justo e racional, está representado pela liberdade, igualdade e fraternidade. O alerta de Vico, de que os regimes racionais reiniciam por ações que demonstram falhas da natureza humana, é desatendido. O homem moderno inaugura a era da razão, confundida como a era dos homens. Não foi contemporânea de Vico a Revolução Francesa. Neste regime, por exemplo, o conceito de liberdade foi relativizado, em 1793, pelo “Comitê de Salvação Pública”, com a criação do conceito de “despotismo da liberdade”, que legitimava execuções penais fraudulentas, perseguições e assassinatos a religiosos. Foi o período denominado Terror. O povo foi a bucha para os canhões revolucionários. O conceito de “despotismo da liberdade” seria, tempos depois, irmanado com a ideia de “Ditadura do Proletariado”, sob o tacão do “socialismo científico”. As duas noções de governo exaltavam a razão humana e rejeitavam o Sagrado. Em termos de fatos históricos, as duas concepções foram derrubadas pelos “vícios humanos”. Nestes casos, o Teísmo não foi base filosófica, nem para o “despotismo da liberdade”, nem para a Ditadura do Proletariado”. Portanto, além da filosofia de Vico não endossar uma nova era permanente da razão, temos que foi a “fé” na razão humana que fez com quem as virtudes pretendidas fossem derrubadas pelos vícios, inerentes ao homem.

Os ataques ao Teísmo nos fazem buscar compreender e estudar um pouco mais esta definição. De modo bastante resumido, temos que Teísmo é um conceito que está baseado em duas qualidades: Deus é uma pessoa e exerce providência na Criação. De acordo com o Dicionário Básico de Filosofia, é doutrina que afirma a existência de um Deus único onipotente, onipresente, e onisciente, criador do universo, tal como na tradição judaico-cristã (2006:264). Deste modo, Japiassú e Marcondes, entendem, inclusive, que a referência monoteísta é a principal para o entendimento do termo. Para Nicola Abbagnanno, em seu Dicionário de Filosofia, o Deus, no teísmo, atua por Revelação e não está subordinado à razão pura do homem; como diria Kant, o teísmo tem por característica o Deus vivo. Deste modo, o Teísmo é um aspecto essencial do espiritualismo (ou personalismo) contemporâneo (2000:238). Os manuais de Filosofia não entendem que o Teísmo seja uma ameaça à razão humana ou um fundamento irracional para imposição de regimes opressores, esta é a interpretação “engajada” de autores que são inimigos da religiosidade como sendo meio de composição política e social. O espiritualismo, essencial no Teísmo, não está muito bem contextualizado ao modo de conceber na típica deísta.

O Teísmo, segundo Nicola Ciola, no Léxicon, ao admitir um absoluto pessoal e transcendente é o oposto ao ateísmo, negação de Deus, e ao deísmo, afirmação de um Deus impessoal e distante da natureza e da história, e da consequente impossibilidade do milagre. Além destes, o Teísmo está oposto, ainda, ao panteísmo, do Deus como o todo da criação, e ao niilismo, que proclama a morte de Deus como sendo espírito de uma época característico da pós-modernidade filosófico teológica (2003: 724-725).

O Teísmo não é uma conceituação que implique em desvirtuar a paz social e política entre as sociedades humanas. O Ser superior “pedagogo” foi a mentalidade que resultou na primeira legislação oficial escrita, o Código de Hamurabi ( aproximadamente 1772 a.C), dádiva do deus Shamash,  que unificou o regulamento social no império babilônico, normatizando a ética daquela civilização. A mentalidade religiosa foi uma aliada ao desenvolvimento as civilizações e a introspecção do homem em sua elevação espiritual está muito mais relacionada à compreensão de um Deus pessoal e ativo do que a uma divindade impessoal e indiferente. Exceto para os desconstrutores sociais, à moda materialista ou pós-modernista, é de fácil entendimento e percepção que o desenvolvimento cultural e o respeito entre os elementos da comunidade são derivados da inteligibilidade de textos sagrados e sua constância atemporal. 

A descrença deísta não apresentou para os europeus uma sociedade satisfatória aos anseios populares, ficou reservada a abastados filósofos inquietos e preocupados em massagear o ego na intenção de colocarem- se acima de Deus. A falta de certezas científicas, que concluíssem o modo de conceber o universo, deu ao deísmo um discurso falacioso de crença em Deus, pois é retirado do homem sua ascese espiritual, seu deus é a Razão comportada pelo seu próprio ego. A filosofia deísta é presunçosa e egocêntrica, redunda em materialismo, e este é o responsável por momentos históricos de “despotismo da liberdade”, como o Terror jacobino revolucionário francês, ou da “Ditadura do Proletariado” dos Gulags soviéticos.

O autor também ataca o Revelacionismo, acessório do Teísmo e sua forma de comunicabilidade. Para Eva Carlota Rava, no Léxicon, Revelação é o ato livre com que Deus comunica seu mistério à humanidade convidando-a à partilha. A revelação constitui o fundamento da fé e sua referência constante; a teologia, que nasce da revelação, procura compreender o mistério à luz da inteligência. A comunicação de Deus com o homem é baseado na Palavra, mas também é observada na natureza criada, pela história e os fatos humanos, pelos profetas em tempos de resgate, e, finalmente, na encarnação do Jesus Cristo. A Revelação, de qualquer modo, demonstra que Deus é Pai atuante, cuidador dos filhos e os amadurecendo no reconhecimento que são criaturas (2003:663). De acordo com Japiassu e Marcondes, a manifestação divina não é incompatível com a inteligência humana. As verdades divinas dos textos sagrados são revelações de inspirações divinas (2006:240-241). A beleza textual e filológica das composições são exemplos das contribuições que a religiosidade dispôs à cultura das civilizações. A Palavra Revelada é uma doutrina dos Paramentos Maçônicos, a Bíblia Aberta recebendo o Esquadro e Compasso. Este é o símbolo da fundamentação espiritual maçônica, integrada à religiosidade.

A relação entre Teísmo e Revelação também está associada entre seus pares, Religião e Espiritualidade. A religião, na definição de Japiassú e Marcondes, é a crença em Deus baseada em celebrações rituais e admite a dissociação entre ordem natural e ordem sacral ou sobrenatural (2006: 239). Não à toa que o Maçonaria adotou o termo “profanos” para os que não estão “dentro do Templo”, uma aberta demonstração do conteúdo conceitual e usual da religiosidade maçônica. De acordo com Hans-Joachim Sander, no Novo Léxico de teologia católica, religião é a vinculação duradoura a um poder que transcende o ser humano e o mundo ou os que fundamenta em sua profundeza. A terminologia religare é uma espiritualidade da ligação permanente com Deus (2015:403). A espiritualidade, na compreensão de Japiassú e Marcondes, é o privilégio do espírito ou a alma em relação à matéria ou corpo, sendo o espírito constituído de natureza autônoma, mais puro e elevado (2006:93). Na concepção de Asseldonk, no Léxicon, a espiritualidade é a causa da unidade mística com Deus (2003:253), posição adequada também em Bertram Stubenrauch, no Novo Léxico, pois a terminologia espiritualidade é criada de Spiritus Dei , ação do Espírito atuar sobre os homens na forma de entender a Deus. Não há relação desligada ou dissociada entre espiritualidade e religiosidade, seja no campo da filosofia, teologia ou história, a espiritualização é uma elevação ao Ser Divino (2015: 200-202). A espiritualidade para o discurso teísta, este sim, é algo compreensível e justificado.

PROBLEMATIZAÇÃO DAS IDEIAS DISCUTIDAS

O título “O pensamento religioso: Deísmo e Maçonaria” está inadequado conceitualmente. O Deísmo, de acordo com Abbagnanno, começa na Inglaterra, principalmente nos escritos de Herbert Cherbury, em De Veritate (1624), e John Toland, em Cristianismo sem mistérios (1696), neste tempo, o que seria denominado de Deísmo, ainda se falaria em “Religião Natural” com peculiaridades aproximadas ao Teísmo, como criação e governo divino do mundo, retribuição do bem e do mal em vida futura. Porém, ao difundir-se na Europa como elemento do Iluminismo, os deístas, a começar por Voltaire, negam que Deus se ocupe dos homens e lhe atribuem a mais radical diferença quanto seu destino (2000:238). Neste caso, temos que o Deísmo em sua comparação e finalidade filosófica, oposta ao Teísmo, amadurece em sua natureza de oposição e perde qualquer referência de tipologia espiritualista. Como analisado, o espiritualismo ou espiritualidade exige a crença em uma existência imaterial distante de qualquer comprovação científica e fruto de uma mentalidade baseada no Revelacionismo, incluindo a terminologia provinda do vocábulo Spiritus Dei. O autor apresenta uma ideia de que existe tipos de Deísmo, mas ao que parece , ao citar que  “Deus governa o mundo (Providência), que castiga os maus e recompensa os bons, inclusive na vida futura”, está confundindo com a fase imatura do Deísmo, quando não estava plenamente conceitualizado. A natureza deísta, por sua lógica de oposição ao Teísmo, não dá procedência à disposições doutrinárias oriundas da Revelação.

O uso de Voltaire como sendo um atestado de que a Maçonaria é deísta é falho e carente de conjunturas. A relação de Voltaire com a Maçonaria é incongruente. De acordo com Japiassú e Marcondes, Voltaire era um panfletário inimigo da religiosidade. O livro O século de Luís XIV (1756), além de elogiar o rei, ataca a religião; desenvolvendo a ideia de que obscurantismo é sinônimo de religiosidade, oposto à razão sendo esta contra a idiotice e a crença. O Cristianismo é abertamente combatido no Dicionário filosófico (1762), o considerando infame (2006:279). Durante o auge de seu prestígio e apoio das cortes, nunca foi interessado à Maçonaria. A atuação maçônica na França começa, obediencialmente, em 1728 com o nome de Grande Loja da França. Com a atuação eivada de política, a Maçonaria na França é modificada em 1773 com a influência de Luis Filipe d´Oleans, que trouxe costumes estranhos a tradição maçônica. A iniciação de Voltaire ocorre no contexto do Grande Oriente de França, potência que pretendia rivalizar com a original inglesa. De acordo com Nicola Aslan, a iniciação foi parte da inciativa de Benjamin Franklin, com Voltaire muito debilitado. A iniciação foi no mesmo ano de sua morte, 1778, não havendo qualquer imersão maçônica. Franklin tinha uma participação ativa na Maçonaria americana, herdeira das tradições inglesas, até 1762, mas desde 1776 a 1785 engaja na maçonaria francesa, principalmente na afamada loja Nove Irmãs (2012:518). Contextualizando a atuação de Benjamin Franklin na França, temos um aparente abandono da Maçonaria em seu solo pátrio. Os Estados Unidos estavam em guerra contra a Inglaterra (1775-1783) e possivelmente as relações maçônicas estavam abaladas. O Deísmo estaria contrariado com ritualística maçônica de cunho bíblico (revelacionista) e o uso doutrinário da nomenclatura Grande Arquiteto do Universo, abolido pelo Grande Oriente de França em 1877, principalmente com a Lenda de Hiramita.

O Deísmo não estaria muito adequado àquela época à sua finalidade filosófica. A ritualística espiritualista estava mais afim com o Teísmo do que a frieza deísta. Nisto temos Ragon, outro maçom que o autor tenta associar ao Deísmo. José Maria Ragon (1781-1866), foi um dos responsáveis pelo Rito Misraim na França e ocultista declarado, também ficou conhecido pelo seu combate aos Altos Graus e ao escocesimo. Seu livro mais conhecido, o Ortodoxia Maçônica (1853), deixou de ser reeditado, de acordo com Aslan, devido suas inúmeras inexatidões (2012: 1140). O perfil de Ragon, não está muito bem adequado com os princípios deístas, talvez sua indisposição com o R.E.A.A. o tenha afamado e tivesse merecida menção por aqueles que criticam o escocesismo. Enfim, Ragon não é uma referência conceituada para quem critica crença vã.

Outra problemática são as críticas aos Revelacionismo, este modo de desprezar a Bíblia (no âmbito do país de maioria cristã) não está de acordo com o ternário dos Paramentos, ou Luzes Maiores, da Maçonaria. Os Paramentos Maçônicos são Esquadro, Compasso e Livro da Lei, ou Livro Sagrado. De acordo com José Castellani, no Dicionário etimológico maçônico, as Três Grandes Luzes Emblemáticas da Maçonaria, um dos símbolos máximos maçônicos, é habitual na maior parte dos Ritos (2004:75). Por exemplo, no R.E.A.A. o Livro da Lei ou Volume Sagrado, ou simplesmente Bíblia, deve estar aberto, pois simboliza exatamente a Revelação que doutrina cada Grau em sua ritualística: Salmos 133 ou João 1.1-5; Amós 7.7-8; e Ecl 12. 1-7. Qualquer discurso com intuito de menosprezar o Revelacionismo bíblico é desrespeitar, não apenas o R.E.A.A., um dos mais tradicionais do país, mas afeta ainda a religião dos crentes cristãos que participam dos Ritos acertadamente teístas, pois estão de acordo com sua concepção de fé.

A intenção de adequar a Maçonaria a uma ideia pessoal de Deísmo deve ser entendido como um empecilho ao bom entendimento do que seja a instituição. Seria muito mais eficaz que autores com concepções próprias de Maçonaria fossem apresentados por editores em sua graduação de Rito ou qual Rito participam. Isso evitaria um a ideia indistinta do que é Maçonaria, servindo para uma melhor exposição e entendimento. Apresentar a Maçonaria numa versão “deísta” recheado de críticas ao “Revelacionismo” não é um bom serviço, ou pelo menos não é uma opinião firmada no modo de fazer Maçonaria, na sua forma habitual e tradicional.

CONCLUSÃO

O capítulo do livro analisado começa com uma oração conhecida como oração da serenidade, amplamente difundido pelos Alcoólicos Anônimos, sendo uma prece de apelo a Deus por sua intervenção e providência. Para se falar de Deus, o autor defenderá o Deísmo e usará como argumento a figura de simbólica de Voltaire. Porém, como discutido, Voltaire não tinha uma imersão maçônica que o valesse como entendido e estudioso das tradições maçônicas. A ideia de Deísmo no Iluminismo, referendado por Voltaire, não crê que Deus se ocupe dos homens e lhe atribuem a mais radical indiferença (2000: 238). Dificilmente o deísta do Iluminismo, período de máxima racionalidade “viconiana”, faria uma “oração da serenidade” apelando por uma providência divina. Esta é a crítica a ser feita em debater qual a compreensão exata de Deísmo. A ação providencialista de Deus é parte essencial do Teísmo, crença professada pelo autor da oração da serenidade, o teólogo evangélico Reinhold Neibuhr. 

As críticas à religiosidade e ao Revelacionismo não ajudam ao entendimento do conceito de espiritualidade. A espiritualidade, de etimologia Spiritus Dei, está intrínseca à ideia fornecida pela Bíblia, Palavra Revelada. A religiosidade, etimologicamente relacionada ao religare, ou à Palavra Revelada, não é à parte da Bíblia. A interação do homem com Deus, não estranha à crença Teísta e a sua Palavra Revelada, é perturbador para um “racionalista deísta”, pois não aceita uma divindade pessoal. A espiritualidade, sem interação do homem com Deus, é um conceito atribuído ao Deísmo de modo incomum. A principal característica do Teísmo é o relacionamento do homem com Deus, pela sua Palavra Revelada, inteligibilidade, rogos e interação. A “espiritualidade” Deísta é alheia ao “religare”, ao Spiritu Dei e a interação do homem com a divindade. Maçônicamente, o Teísmo é, autenticamente, o modelo da maioria dos Ritos. Esclarecendo o assunto, Alec Mellor, em seu Dicionário da Franco-Maçonaria e dos Franco-Maçons, escreve que o Deísmo é uma oposição ao cristianismo e que foi utilizado pelo autor anti maçonaria, Bernard Fay, para induzir os leitores de que a Grande Loja de Londres tinha como pretensão, em sua fundação, desfazer-se do Cristianismo a favor do Deísmo. Porém, os Estatutos de Anderson eram teístas (1989: 103).

Espiritualidade não combina com Deísmo, e este não combina com a Maçonaria clássica. A ideia de que existe vertentes variadas de Deísmo, havendo radicalismo, também não está muito bem fundamentada, muito menos se o referencial de autoridade argumentativa estiver baseado em Voltaire. Não há outras vertentes além da inglesa e francesa, com esta sendo o amadurecimento daquela. A crença na racionalidade humana como sendo a solução para os problemas da humanidade, sendo a religiosidade Revelada, por exemplo, um mal, está defendida na omissão dos males causados pela política revolucionária que exclui o Deus Revelado de seus parâmetros. No âmbito da Maçonaria, a associação com o Deísmo, com alusão ao ateísmo, ameaça não apenas a participação de maçons cristãos, mas confunde a maioria dos Ritos, que são teístas. A tradição maçônica ao ser honrada manterá o dever místico de transformar o homem. Sem a mística maçônica, a Ordem será um clube social de filosofia vã e perdida , troféu para os céticos e materialistas.

À.G.D.G.A.D.U
E. L. de Mendonça
SALUS SAPIENTIA STABILITA

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